Recentemente, li reportagem que me deixou muito intrigado – na verdade, perplexo. Com argumentação aparentemente científica e procedente de dados oficiais, apresentava a seguinte afirmação: “Reforma deve aprofundar fosso salarial de não sindicalizado”. O texto era contundente: “As novas regras trabalhistas devem aprofundar a diferença salarial entre trabalhadores sindicalizados e não sindicalizados, na visão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)”, à medida que, segundo estudo coordenado pelo instituto, “sindicalizados ganham 33,5%, na média, mais que os não sindicalizados”. A pergunta que se faz: como assim?
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Se isso, de fato, fosse uma realidade, seria a “materialização jurídica da inconstitucionalidade”. Não é possível esse tipo de discriminação, ainda que eventualmente alguém possa considerá-la positiva. Um trabalhador sindicalizado não pode, somente por essa condição, ganhar mais ou ter qualquer outro benefício sobre um trabalhador que não pertença associativamente a um sindicato. Aliás, a Constituição Federal é taxativa neste sentido. No seu artigo 8.º, inciso V, ela é enfática: “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”. Logo, essa condição não é meio para se obter qualquer benesse institucional.
Mais ainda: todos os instrumentos coletivos – acordos ou convenções coletivas de trabalho – que trazem direitos (além daqueles previstos em lei) aos trabalhadores pertencentes a uma determinada categoria que o sindicato representa não fazem quaisquer distinções ou irradiações diferenciadas entre os direitos ali previstos para trabalhadores sindicalizados ou não, pois estão juridicamente proibidos de fazê-lo. Não há diferença.
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De onde vêm, então, os dados citados na matéria dizendo que essa diferenciação existe? Que, por exemplo, “os trabalhadores não sindicalizados ganhavam, em média, R$ 1,675,68, e os associados a sindicatos ganhavam R$ 2,237,86”? Ou, então, que “36% dos sindicalizados recebem auxílio-saúde, contra 20,3% dos não sindicalizados”? Que “63,9% dos trabalhadores sindicalizados têm acesso ao auxílio-alimentação, ante 49,3% dos não sindicalizados”? Difícil saber. Jurídica e estatisticamente, isso não existe. Juridicamente, é impossível, é inconstitucional. Revela-se, pois, como mais uma “pós-verdade”.
Que os sindicatos têm um papel importantíssimo na defesa dos trabalhadores ninguém contesta – eles têm essa função e obrigação por força da Constituição Federal, que prevê que lhes cabe a defesa dos interesses individuais e coletivos de todos os trabalhadores da categoria. Que, com a reforma trabalhista, eles terão mais força política e institucional, disso igualmente não há dúvida. Mais ainda: por certo, todos sabem, a associação de trabalhadores aumenta ainda mais esse vigor representativo. Agora, daí a se concluir que quem não é associado perderá com a reforma trabalhista há uma distância muito grande. Além de simplesmente não ser verdade sob a ótica legal.
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Os sindicalizados atualmente, e somente por esse motivo, já têm mais direitos que os demais. Se não têm, como podem perdê-los? Como perder alguma coisa que não se tem? Não há o mínimo fundamento técnico-jurídico e mesmo científico para essa despropositada afirmação, na medida em que não existe suporte legal para sustentar uma assertiva como esta.
É importante – na verdade, democraticamente imprescindível – que todos os posicionamentos favoráveis e contrários à reforma trabalhista sejam exteriorizados neste momento de profundas mudanças. Podem e devem, por certo, ser embasados em crenças ideológicas e posicionamentos políticos. Tudo isso faz parte do jogo democrático. Mas divulgar determinada apuração, em estudos científicos e estatísticos, com base em dados que são na origem ilícitos, por ausência de possibilidade jurídica de materialização, não é legal nos dois sentidos: jurídico e democrático. Não se pode utilizar pesquisas da mesma maneira que um bêbado utiliza um poste, mais pelo apoio que pela iluminação.
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